Há uma década, em abril de 2010, o Superior Tribunal de Justiça – STJ permitiu que duas mães tivessem seus nomes nos registros de adoção. Marco na luta pelos direitos da população LGBTI, a decisão abriu um precedente para que casais homotransafetivos pudessem adotar e passassem a ter suas famílias adequadamente reconhecidas.
Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM, a advogada Maria Berenice Dias aponta que foi longa a trajetória desses casais para terem reconhecido o direito a constituir família com filhos. “A adoção é o caminho natural dessas uniões que não têm capacidade procriativa”, observa.
Ela lembra que, antes de os casais poderem se habilitar para adoção, era usado o artifício de apenas um dos companheiros se candidatar para o processo, o que contrariava o princípio constitucional do melhor interesse da criança. “Só um seria submetido à avaliação, enquanto, na realidade, o filho moraria com dois pais ou duas mães”, explica Maria Berenice.
Segundo a advogada, ainda persiste um questionamento sobre uma possível influência, na formação dos filhos, da ausência de um modelo parental masculino ou feminino. Ela destaca, por outro lado, que a atenção deveria ser dispensada com o fato de que tantas crianças e adolescentes finalmente encontraram um lar graças ao avanço na jurisprudência, há uma década.
“Essas crianças foram institucionalizadas porque os pais biológicos não conseguiram desempenhar os cuidados, como a lei determina. O abrigo onde são, literalmente, depositadas não lhes traz identidade nem nada de seu, enquanto em um lar recebem todo o carinho e afeto que merecem”, pondera Maria Berenice.
Conquistas frágeis
A advogada afirma que o Poder Legislativo segue omisso em reconhecer direitos e impor obrigações quanto a quem foge aos modelos convencionais de família. “Todas as conquistas da população LGBTI foram no âmbito do Poder Judiciário. São conquistas frágeis, já que há, inclusive, a possibilidade de trocas na composição dos tribunais superiores”, atenta Maria Berenice.
Para ela, é indispensável a aprovação de uma legislação sobre o tema. A proposta de um Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero (Projeto de Lei do Senado 134/2018), que teve apoio do IBDFAM na elaboração e apresentação junto a movimentos sociais, contou com uma iniciativa popular que reuniu 100 mil assinaturas. Segundo Maria Berenice, o PL tramita no Congresso “com a velocidade que essas questões sempre têm, ou seja, muito vagarosamente”.
E ressalta: “O que precisamos agora é de uma legislação, inclusive, com alteração constitucional, como já foi proposto. Seria um grande passo para este País, onde, apesar de o horizonte estar cada vez mais escuro, não podemos perder a esperança e a fé.”
Preconceito e descrédito no Poder Legislativo
Membro do IBDFAM e presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas – ABRAFH, o advogado Saulo Amorim também ressalta a importância de uma previsão legislativa sobre a adoção por casais LGBTI.
“Há mais de uma década, não percebemos efetiva disponibilidade do Poder Legislativo para atuar em favor de nossas famílias. Pelo contrário, a falta de interesse é expressa na inércia e na desídia da apreciação de projetos favoráveis, bem como o preconceito evidente na apreciação de projetos que reforçam os modelos de família anacrônicos”, afirma Saulo.
Para o advogado, a ausência de uma produção legislativa sobre o tema evidencia um descrédito e o preconceito por parte dos nossos representantes. “As famílias LGBTI+ não são ‘novas’ e nem ‘contemporâneas’, porque sempre existiram. Nossas famílias apenas saíram dos ‘armários’ e corajosamente se revelaram à sociedade com a ajuda do protagonismo judiciário”, define.
“Há urgência na apreciação dos projetos de lei que regulamentem a adoção e outras demandas das famílias LGBTI+, para que não haja dúvida alguma sobre seus direitos e que seja amenizada a rejeição histórica”, frisa Saulo.
Entraves práticos
Segundo o advogado, entre os principais entraves encontrados por esses casais nos processos de adoção, está o acesso à informação de qualidade e a compreensão das particularidades por parte das equipes técnicas e magistrados. “Muitas famílias LGBTI+ vivem em condição miserável, distantes dos centros urbanos e alijadas do trabalho formal. A maioria desconhece, por isso, os caminhos da adoção legal e a gratuidade do processo”, expõe.
“Outro aspecto é a falta de capacitação das equipes técnicas e, principalmente, dos magistrados sobre o tema diversidade sexual e de famílias. Ainda hoje, sabemos de pareceres e decisões extremamente equivocados, que esbarram na falta de compreensão das identidades trans, da assexualidade ou da coparentalidade”, exemplifica Saulo.
Fonte: Boletim Informativo IBDFAM 619
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